MANUAL PRÁTICO DE DIREITO INTERNACIONAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
JORGE RODRIGUES SIMÃO
2026
Introdução Geral
o
Conceito e evolução histórica
da propriedade intelectual
o Justificação da protecção
internacional
o Metodologia e enquadramento
jurídico
2. Fundamentos do Direito Internacional da Propriedade Intelectual
o Princípios estruturantes
o Fontes jurídicas internacionais
o
Intersecções com o comércio
internacional e os direitos humanos
3. Convenções e Tratados
Internacionais
o Convenção de Paris (1883)
o Convenção de Berna (1886)
o Acordo TRIPS (1994)
o
Tratado de Cooperação em
Matéria de Patentes (PCT)
o Tratado de Marraquexe
o Tratado de Budapeste
o
Convenção de Genebra sobre os
Circuitos Integrados
4. Organizações Internacionais e Mecanismos de Governação
o
OMPI (Organização Mundial da
Propriedade Intelectual)
o
OMC (Organização Mundial do
Comércio)
o
UNESCO e a protecção do
património imaterial
o
Tribunal Internacional de
Justiça e arbitragem internacional
5. Direito Comparado e Sistemas Regionais
o União Europeia: Directivas e
Regulamentos
o
Estados Unidos: USPTO e
jurisprudência relevante
o
China: evolução normativa e
desafios contemporâneos
o
Mercosul e CPLP: perspectivas
de integração
6. Portugal
o Enquadramento constitucional e
legal
o
Código da Propriedade
Industrial (Decreto-Lei n.º 110/2018)
o
Direitos de autor e direitos
conexos (Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos)
o Jurisprudência relevante dos
tribunais superiores
o
Papel do INPI e cooperação
internacional
o
Desafios contemporâneos: digitalização,
IA e protecção de dados
7. Macau
o Enquadramento jurídico sob a RAEM
o
Lei n.º 43/99/M - Regime da
Propriedade Industrial
o
Lei n.º 5/99/M - Direitos de
Autor e Direitos Conexos
o
Relação com a China e tratados
aplicáveis
o
Cooperação com a OMPI e lusofonia
jurídica
o
Jurisprudência local e
desafios de harmonização
8. Desafios Contemporâneos e
Perspectivas Futuras
o Inteligência artificial e criação
autónoma
o Blockchain e registo
descentralizado
o Biotecnologia e patentes éticas
o
Equidade no acesso à propriedade
intelectual
o
Propostas de reforma e
tendências globais
9. Conclusão
o
Síntese dos principais
desafios e oportunidades
o
Propostas para uma governança
mais equitativa
o
Reflexão sobre o papel da
lusofonia no sistema internacional
10. Bibliografia Académica
o
Doutrina portuguesa,
brasileira, europeia e internacional
o Artigos científicos, teses e
pareceres
o
Documentos oficiais da OMPI,
OMC, UNESCO, INPI, SIPO, USPTO
CAPÍTULO I
Introdução Geral
1.Conceito e Evolução Histórica da Propriedade
Intelectual
A propriedade intelectual constitui um ramo
jurídico que tutela os direitos sobre criações do espírito humano, abrangendo
invenções, obras literárias e artísticas, marcas, desenhos industriais,
indicações geográficas, segredos comerciais, entre outros bens imateriais. A
sua natureza jurídica é dual; por um lado, reconhece o direito exclusivo do
criador ou titular; por outro, equilibra esse direito com o interesse público
na difusão do conhecimento e da cultura.
Historicamente, a protecção da propriedade
intelectual remonta ao Estatuto de Monopólio de Veneza (1474),
considerado o primeiro diploma legal sobre patentes. Em Inglaterra, o Statute
of Anne (1710) inaugurou o regime moderno de direitos de autor. A
consolidação internacional deu-se com a Convenção de Paris (1883) para
a propriedade industrial e a Convenção de Berna (1886) para os
direitos de autor, ambas precursoras da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI), criada pela Convenção de Estocolmo (1967).
A evolução do conceito acompanha a transformação das
economias industriais em economias do conhecimento. A propriedade intelectual
deixou de ser um instrumento meramente técnico para se tornar um eixo
estratégico de desenvolvimento, inovação e competitividade global.
Justificação da Protecção Internacional
A protecção internacional da propriedade
intelectual justifica-se por múltiplos factores:
·
Globalização dos mercados: As criações intelectuais circulam transnacionalmente, exigindo normas
harmonizadas para garantir segurança jurídica e previsibilidade.
·
Incentivo à inovação: A protecção estimula a criação ao assegurar retorno económico ao criador,
promovendo investimento em investigação e desenvolvimento.
·
Equidade e desenvolvimento: A regulação internacional procura equilibrar os interesses dos países
industrializados e em desenvolvimento, como consagrado na Declaração de
Doha sobre TRIPS e Saúde Pública (2001).
·
Combate à contrafacção e pirataria: A cooperação internacional é essencial para
enfrentar práticas ilícitas que prejudicam criadores, consumidores e economias
nacionais.
Instrumentos como o Acordo TRIPS (1994),
no âmbito da OMC, estabeleceram padrões mínimos de protecção e mecanismos de
resolução de litígios, reforçando a arquitectura jurídica internacional.
Metodologia e Enquadramento Jurídico
Este estudo adopta uma abordagem
jurídico-dogmática, complementada por análise comparativa e contextual.
A metodologia baseia-se em:
·
Revisão bibliográfica especializada, com recurso a doutrina nacional e internacional,
pareceres técnicos e jurisprudência relevante.
·
Análise normativa, incluindo tratados multilaterais (TRIPS, Convenções de Paris e Berna,
PCT, Tratado de Marraquexe), legislação nacional (Portugal, Macau) e
regulamentos regionais (União Europeia).
·
Estudo de casos e práticas institucionais, com referência à actuação da OMPI, OMC, INPI, e
entidades locais.
O enquadramento jurídico insere-se no sistema
internacional de protecção dos direitos de propriedade intelectual,
caracterizado pela coexistência de normas multilaterais, regionais e bilaterais.
A interacção entre o direito internacional público, o direito do comércio
internacional e o direito da concorrência molda a aplicação e interpretação dos
direitos intelectuais.
Este capítulo estabelece, assim, as bases teóricas
e metodológicas para a compreensão aprofundada do Direito Internacional da
Propriedade Intelectual, preparando o terreno para os capítulos seguintes,
dedicados às convenções, sistemas regionais e estudos de caso específicos.
2. Fundamentos do Direito Internacional da
Propriedade Intelectual
Princípios
estruturantes
·
Trato nacional:
Assegura aos nacionais dos outros Estados a mesma protecção conferida aos
nacionais do Estado de acolhimento, evitando discriminação e promovendo
previsibilidade jurídica transfronteiriça.
·
Protecção mínima e harmonização progressiva: Estabelece patamares mínimos de tutela para cada
modalidade (patentes, marcas, desenhos, direitos de autor, indicações
geográficas), permitindo que os Estados ampliem protecções de acordo com suas
políticas públicas, sem romper com a coerência sistémica internacional.
·
Direitos conferidos e limitações proporcionadas: Os monopólios jurídicos são equilibrados
por excepções e limitações (uso justo, esgotamento, excepções de investigação e
ensino, licenças compulsórias), preservando a função social da propriedade
intelectual e o acesso ao conhecimento.
·
Independência dos direitos e territorialidade: Os títulos concedidos e os direitos de
autor vigoram segundo a lei do país de protecção, ainda que harmonizados por
convenções; a validade e o alcance são territoriais, salvo mecanismos de
registo internacional que simplificam a obtenção em múltiplas jurisdições.
·
Prioridade unionista e segurança procedimental: Garante ao requerente que, após o
primeiro depósito, possa invocar prioridade em outros países dentro de prazos
definidos, preservando novidade e investindo em previsibilidade para a
inovação.
·
Exigência de transparência e devido processo: Procedimentos administrativos e contenciosos em
matéria de PI devem observar publicidade suficiente, prazos razoáveis,
contraditório e possibilidade de revisão, criando confiança para investimento e
transferência de tecnologia.
·
Equilíbrio desenvolvimento-inovação: Reforça a necessidade de calibrar incentivos à
criação com salvaguardas de acesso (saúde pública, educação, inclusão digital),
inserindo a PI na agenda de desenvolvimento sustentável.
·
Boa-fé e repressão à concorrência desleal: Impede actos susceptíveis de causar confusão,
descrédito ou aproveitamento parasitário, tutelando mercados justos e a
confiança dos consumidores.
·
Proporcionalidade e não-abuso de direito: Evita que a PI seja utilizada para bloquear a
concorrência legítima, impor restrições indevidas ou perpetuar exclusividade
para além do escopo protegido.
Fontes jurídicas
internacionais
· Convenções clássicas multilaterais:
o
Convenção de Paris (propriedade industrial): trato nacional, prioridade unionista, repressão
à concorrência desleal, princípios gerais aplicáveis a patentes, marcas,
desenhos e indicações geográficas.
o
Convenção de Berna (direitos de autor): protecção automática, independência da protecção,
trato nacional, direitos morais, direitos patrimoniais e durações mínimas.
·
Acordos no âmbito do comércio internacional:
o
Acordo TRIPS:
padrões mínimos transversais, enforcement civil e penal, medidas aduaneiras,
transparência, solução de controvérsias, e flexibilidades (ex: licenças
compulsórias e importações paralelas em contexto de saúde pública).
·
Tratados especializados de registo e cooperação:
o
PCT (patentes):
pedido internacional, busca e exame preliminar, racionalização de prazos;
o
Sistema de Madrid (marcas): pedido internacional e designações múltiplas;
o
Sistema da Haia
(desenhos e modelos): depósito internacional simplificado;
o
Tratado de Budapeste (depósito de microrganismos) e instrumentos correlatos para biotecnologia;
o
Tratado de Marraquexe (excepções a direitos de autor para pessoas cegas ou com deficiência
visual).
· Direito regional e supranacional:
o
União Europeia:
regulamentos e directivas sobre marcas da UE, desenhos comunitários, direitos
de autor no mercado único digital, bases de dados, medidas de enforcement e
aduaneiras; jurisprudência do TJUE em temas de esgotamento, originalidade, e
equilíbrio entre PI e liberdades fundamentais.
·
Soft law e agendas programáticas:
o
Agenda da OMPI para o Desenvolvimento, recomendações técnicas, directrizes de melhores práticas,
cooperação técnica e modelos legislativos;
o
Instrumentos da UNESCO para património cultural e bens imateriais quando cruzam protecção de
expressões tradicionais e direitos de autor.
·
Direito internacional público e prática institucional:
o
Interpretação
sistemática de tratados, costumes, princípios gerais e decisões em mecanismos
arbitrais e de solução de controvérsias;
o
Prática
de autoridades nacionais e regionais (INPI, EUIPO, USPTO, CNIPA/SIPO) como
fontes auxiliares de uniformização.
Intersecções com o comércio internacional e os direitos humanos
· Comércio internacional:
o
Integração normativa pelo TRIPS: A PI passa a compor o núcleo do sistema
multilateral de comércio, vinculando padrões mínimos a mecanismos de resolução
de litígios, com efeitos diretos no desenho de políticas industriais e
tecnológicas.
o
Fluxos de investimento e transferência de tecnologia: A previsibilidade da PI reduz risco, mas
requer cautelas para evitar dependência tecnológica e cláusulas restritivas em
contratos de licença; incentiva-se a difusão tecnológica via excepções e
programas de cooperação.
o
Medidas de enforcement e barreiras técnicas: Actuação aduaneira contra contrafacção e
pirataria deve respeitar devido processo, proporcionalidade e evitar entraves
desnecessários à circulação de bens legítimos; políticas de esgotamento afectam
regimes de importação paralela e preços.
o
Concorrência e práticas anticompetitivas: A tutela de PI convive com o direito da
concorrência; condutas de abuso de posição dominante ou de “patent thickets”
são sujeitas a escrutínio, promovendo mercados dinâmicos e inovação
incremental.
· Direitos humanos:
o
Direito à ciência, cultura e educação: Excepções e limitações são instrumentos de
realização de direitos culturais e científicos, garantindo acesso a obras e
conhecimentos sem esvaziar incentivos à criação; bibliotecas, ensino e pesquisa
tiram proveito de regimes de cópia técnica e citações.
o
Saúde pública:
Flexibilidades (licenças compulsórias e importações paralelas) permitem
responder a emergências sanitárias e necessidades de acesso a medicamentos,
harmonizando incentivos à inovação farmacêutica com o direito à saúde.
o
Não discriminação e inclusão: A PI deve ser concebida com acessibilidade (ex:
Marraquexe) e tutela de expressões culturais tradicionais, evitando apropriação
indevida de saberes comunitários e garantindo participação informada das
comunidades.
o
Proporcionalidade e função social: A ponderação entre exclusividade e interesse
público é orientada por princípios de necessidade e adequação; medidas devem
ser estreitamente calibradas para não restringir de forma desproporcionada
liberdades de expressão, informação e criação.
Síntese operative
·
Arquitectura em camadas: Convenções clássicas (Paris, Berna) definem princípios; TRIPS consolida
padrões e enforcement; sistemas de registo (PCT, Madrid, Haia) operacionalizam
a obtenção multinacional; direito regional (UE) aprofunda harmonização.
·
Governança baseada em equilíbrio: Incentivos à criatividade coexistem com excepções
e flexibilidades; enforcement é robusto, mas sob controlo de proporcionalidade
e devido processo.
·
Agenda de desenvolvimento: A OMPI e instrumentos correlatos enfatizam que PI não é fim em si, mas
meio para inovação inclusiva, acesso equitativo e sustentabilidade cultural e
tecnológica.
CAPÍTULO III
Convenções e Tratados Internacionais
Convenção de Paris (1883) - Propriedade Industrial
A Convenção
de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial, assinada em 1883, é o primeiro grande
tratado multilateral nesta matéria.
·
Âmbito: patentes, marcas, desenhos e modelos
industriais, indicações geográficas, concorrência desleal.
· Princípios fundamentais:
o
Trato
nacional: os
nacionais de outros Estados membros recebem o mesmo tratamento que os
nacionais.
o
Prioridade
unionista: após o
primeiro depósito num Estado membro, o requerente tem prazos (12 meses para
patentes e modelos de utilidade; 6 meses para marcas e desenhos) para requerer
protecção noutros países sem perder novidade.
o
Independência
dos direitos: a
concessão ou recusa num país não afeta os demais.
·
Impacto: criou uma base de confiança para o
comércio internacional e para a circulação de invenções e sinais distintivos.
Convenção de
Berna (1886) - Direitos de Autor
A Convenção
de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas estabeleceu normas universais para os
direitos de autor.
·
Âmbito: obras literárias, artísticas, musicais,
cinematográficas, fotográficas, entre outras.
· Princípios fundamentais:
o
Protecção
automática: não
depende de registo formal.
o
Independência
da protecção: cada
Estado protege segundo a sua lei, independentemente da protecção no país de
origem.
o
Direitos
morais:
reconhecimento da paternidade e integridade da obra.
o
Duração
mínima: 50 anos após
a morte do autor (em muitos países ampliada para 70 anos).
·
Impacto: consolidou a ideia de que a criação
intelectual merece tutela universal, reforçando a dignidade do autor.
Acordo TRIPS (1994) - Comércio e PI
O Acordo
sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o
Comércio (TRIPS),
celebrado no âmbito da OMC, é o mais abrangente instrumento internacional.
·
Âmbito: patentes, marcas, direitos de autor,
desenhos industriais, indicações geográficas, segredos comerciais, circuitos
integrados.
·
Princípios: trato nacional, nação mais favorecida,
padrões mínimos de protecção, enforcement judicial e aduaneiro.
·
Flexibilidades: licenças compulsórias, importações
paralelas, excepções para ensino e investigação.
·
Impacto: vinculou a PI ao sistema multilateral de
comércio, permitindo sanções em caso de incumprimento e equilibrando inovação
com acesso, especialmente em saúde pública.
Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT) – 1970
O PCT, administrado pela OMPI, simplifica o
processo de obtenção de patentes em múltiplos países.
·
Âmbito: pedidos internacionais de patente.
· Mecanismos:
o
Pedido
único com efeito em todos os Estados designados.
o
Relatório
de busca internacional e exame preliminar.
o
Extensão
de prazos para entrada em fases nacionais.
·
Impacto: reduziu custos e complexidade,
facilitando a internacionalização da inovação.
Tratado de Marraquexe (2013) -
Acesso a Obras Publicadas
O Tratado
de Marraquexe,
administrado pela OMPI, visa facilitar o acesso a obras publicadas por pessoas
cegas ou com deficiência visual.
·
Âmbito: excepções obrigatórias aos direitos de
autor para produção e distribuição de formatos acessíveis (braille, áudio,
digital).
·
Impacto: promove inclusão e efectivação dos
direitos humanos, equilibrando exclusividade com solidariedade social.
Tratado de Budapeste (1977) - Depósito de Microrganismos
O Tratado
de Budapeste regula
o reconhecimento internacional do depósito de microrganismos para fins de
patente.
·
Âmbito: invenções biotecnológicas que exigem
acesso a microrganismos para reprodução.
·
Mecanismo: um único depósito num centro
internacional reconhecido é válido para todos os Estados membros.
·
Impacto: simplificou processos e garantiu
segurança científica e jurídica em biotecnologia.
Convenção de Genebra sobre os Circuitos Integrados (1989)
A Convenção
de Washington/Genebra sobre a Protecção das Topografias de Circuitos Integrados (também conhecida como Tratado de
Washington) protege a disposição tridimensional dos elementos de circuitos
integrados.
· Âmbito: topografias de semicondutores.
·
Princípios: protecção contra reprodução não
autorizada, trato nacional, duração mínima de 10 anos.
·
Impacto: respondeu à necessidade de proteger
inovação tecnológica em electrónica, sector estratégico da economia global.
Síntese
Estas convenções e tratados formam o núcleo do Direito Internacional da Propriedade
Intelectual,
articulando:
· Protecção clássica (Paris, Berna),
· Integração comercial (TRIPS),
· Simplificação procedimental (PCT, Budapeste),
·
Inclusão
social e direitos humanos (Marraquexe),
· Tecnologia emergente (Genebra).
Juntos, criam uma arquitectura jurídica que
equilibra inovação, comércio, cultura e direitos fundamentais.
CAPÍTULO IV
Organizações Internacionais e Mecanismos
de Governação
OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual
A OMPI, criada pela Convenção de Estocolmo de
1967 e integrada como agência especializada da ONU em 1974, é o organismo
central na governação da propriedade intelectual a nível internacional.
·
Missão: promover a protecção da propriedade
intelectual em todo o mundo e assegurar a cooperação entre Estados.
· Funções principais:
o
Administração
de tratados internacionais (Paris, Berna, PCT, Madrid, Haia, Marraquexe,
Budapeste, entre outros).
o
Prestação
de serviços de registo internacional de patentes, marcas e desenhos.
o
Apoio
técnico e legislativo a Estados membros, incluindo programas de capacitação e
harmonização normativa.
o
Resolução
de litígios através do Centro de Arbitragem e Mediação da OMPI.
·
Impacto: a OMPI funciona como fórum de negociação
e como prestadora de serviços, equilibrando interesses de países desenvolvidos
e em desenvolvimento, e promovendo a agenda de inovação e desenvolvimento
sustentável.
OMC - Organização Mundial do Comércio
A OMC, criada em 1995, integra a propriedade
intelectual no sistema multilateral de comércio através do Acordo TRIPS.
·
Missão: assegurar que o comércio internacional
decorra de forma previsível, transparente e equitativa.
· Funções principais:
o
Implementação
e monitorização do Acordo TRIPS.
o
Mecanismo
de resolução de litígios, permitindo que Estados membros accionem painéis
contra violações de normas de PI.
o
Revisão
periódica das políticas comerciais dos Estados membros.
·
Impacto: a OMC introduziu sanções comerciais como
mecanismo de enforcement da PI, reforçando a sua centralidade na economia
global. Contudo, também abriu espaço para flexibilidades, como licenças
compulsórias em saúde pública, equilibrando inovação e direitos humanos.
UNESCO - Protecção do Património Imaterial
A UNESCO desempenha papel complementar ao da OMPI,
focando-se na protecção de bens culturais e património imaterial.
· Instrumentos relevantes:
o
Convenção
para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (2003).
o
Convenção
Universal sobre Direitos de Autor (1952), antecedente da harmonização
internacional.
· Funções principais:
o
Reconhecimento
e salvaguarda de expressões culturais tradicionais, folclore, saberes
comunitários e práticas imateriais.
o
Promoção
da diversidade cultural e da inclusão social.
·
Impacto: a UNESCO amplia o conceito de propriedade
intelectual para além da lógica mercantil, valorizando a dimensão cultural e
comunitária, e prevenindo apropriação indevida de tradições.
Tribunal Internacional de Justiça e Arbitragem Internacional
O Tribunal
Internacional de Justiça (TIJ), enquanto órgão judicial principal da ONU, não tem competência directa
sobre litígios de propriedade intelectual entre particulares, mas pode dirimir
conflitos entre Estados relativos à interpretação de tratados internacionais de
PI.
· Funções principais:
o
Julgar
disputas entre Estados sobre aplicação de convenções internacionais.
o
Emitir
pareceres consultivos sobre questões jurídicas relacionadas com PI.
· Arbitragem internacional:
o
A
OMPI administra mecanismos de arbitragem e mediação para litígios entre
empresas e particulares, especialmente em contratos de licença, franchising e
transferência de tecnologia.
o
A
arbitragem internacional oferece celeridade, confidencialidade e especialização
técnica, sendo alternativa eficaz aos tribunais nacionais.
·
Impacto: reforça a confiança dos agentes
económicos e dos Estados na previsibilidade e imparcialidade da governação
internacional da PI.
Síntese
O sistema internacional de propriedade intelectual
assenta numa arquitetura
institucional plural:
·
A OMPI como fórum técnico e normativo,
·
A OMC como garante da integração da PI no comércio
global,
·
A UNESCO como guardiã da dimensão cultural e imaterial,
·
O TIJ e a arbitragem internacional como mecanismos de resolução de litígios
e interpretação jurídica.
Juntos, estes organismos asseguram que a
propriedade intelectual seja simultaneamente instrumento de inovação, comércio, cultura e justiça
internacional.
CAPÍTULO V
Direito Comparado e Sistemas Regionais
União Europeia: Directivas e
Regulamentos
A UE construiu um dos sistemas mais avançados e
harmonizados de propriedade intelectual, com base em regulamentos directamente aplicáveis e directivas de transposição obrigatória.
·
Marcas
da União Europeia:
Regulamento (UE) 2017/1001, administrado pelo EUIPO, cria um título unitário
válido em todos os Estados-Membros.
·
Desenhos
e modelos comunitários: Regulamento (CE) 6/2002, com protecção unitária e possibilidade de registo
ou protecção não registada.
·
Direitos
de autor: Directiva
2001/29/CE (InfoSoc), Directiva 2019/790/UE (Direitos de Autor no Mercado Único
Digital), que introduz regras sobre plataformas digitais e direitos conexos dos
editores de imprensa.
·
Patentes: Não existe patente unitária plena, mas o Acordo sobre o Tribunal Unificado de
Patentes e o
Regulamento (UE) 1257/2012 criaram o sistema da Patente Europeia com Efeito Unitário, em fase de implementação.
·
Indicações
geográficas:
Regulamentos específicos para produtos agrícolas, vinhos e bebidas
espirituosas, com forte impacto na protecção de tradições regionais.
·
Jurisprudência
do TJUE: Casos como Infopaq (C‑5/08) sobre originalidade, L’Oréal v. eBay (C‑324/09) sobre responsabilidade de plataformas, e Huawei v. ZTE (C‑170/13) sobre patentes essenciais e
concorrência, moldaram a interpretação uniforme.
Impacto: A UE equilibra inovação e acesso, criando um mercado único digital e
industrial com normas harmonizadas e jurisprudência vinculativa.
Estados Unidos: USPTO e
Jurisprudência Relevante
Nos Estados Unidos, a propriedade intelectual é
regulada por legislação federal e administrada por órgãos especializados.
· USPTO (United States Patent and Trademark Office): responsável pelo registo de patentes e marcas.
·
Copyright
Office: administra
registos de direitos de autor.
· Legislação:
o Patent Act (35 U.S.C.),
o
Lanham
Act (15 U.S.C.) para
marcas,
o Copyright Act (17 U.S.C.).
· Jurisprudência relevante:
o
Diamond v. Chakrabarty
(1980): patenteabilidade de organismos geneticamente modificados.
o
Sony v. Universal
(1984): doutrina do “fair use” aplicada a gravações privadas.
o
Alice Corp. v. CLS Bank
(2014): limites à patenteabilidade de software e métodos de negócio.
o Google v. Oracle (2021): fair use em APIs de software.
·
Impacto: O sistema americano é pragmático, com
forte influência jurisprudencial, flexível na interpretação de excepções e
robusto na protecção de inovação tecnológica.
China: Evolução Normativa e
Desafios Contemporâneos
A China passou de um sistema incipiente para um
dos mais dinâmicos em matéria de PI.
· Instituições: CNIPA (China National Intellectual Property Administration).
· Legislação:
o
Lei
de Patentes (1984, várias revisões, última em 2020).
o
Lei
de Marcas (1982, revisões sucessivas).
o
Lei
de Direitos de Autor (1990, revisões em 2020).
· Características:
o
Fortalecimento
da protecção judicial e administrativa.
o
Criação
de tribunais especializados em PI em Pequim, Xangai e Guangzhou.
o
Incentivo
à inovação doméstica e combate à contrafacção.
· Desafios contemporâneos:
o
Equilíbrio
entre protecção e acesso, especialmente em saúde pública.
o
Harmonização
com padrões internacionais (TRIPS, OMPI).
o
Questões
de enforcement e transparência processual.
·
Impacto: A China tornou-se líder mundial em
depósitos de patentes e marcas, mas enfrenta críticas sobre qualidade das
patentes e coerência na aplicação judicial.
Mercosul e CPLP: Perspectivas de
Integração
· Mercosul:
o
Não
possui sistema unitário de PI, mas promove cooperação entre INPI (Brasil), INPI
(Argentina), DNPI (Uruguai) e DINAPI (Paraguai).
o
Harmonização
parcial em marcas e indicações geográficas.
o
Desafios:
disparidades legislativas e falta de tribunal supranacional.
·
CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa):
o
Cooperação
técnica e legislativa em PI, com apoio da OMPI.
o
Potencial
para harmonização de regimes de direitos de autor e propriedade industrial.
o
Perspectiva
de integração: criação de bases comuns de jurisprudência e registos
partilhados, valorizando a língua portuguesa como veículo de difusão normativa.
Impacto: Tanto o Mercosul como a CPLP enfrentam desafios de harmonização, mas
representam espaços de cooperação jurídica e cultural, com potencial para
reforçar a protecção da PI em contextos regionais e lusófonos.
Síntese
O direito
comparado e os sistemas regionais revelam diferentes modelos:
·
UE: harmonização supranacional com
jurisprudência vinculativa.
·
EUA: pragmatismo jurisprudencial e
flexibilidade normativa.
·
China: expansão acelerada com desafios de
enforcement.
·
Mercosul
e CPLP: cooperação
incipiente, mas com potencial de integração.
Este mosaico demonstra que a propriedade
intelectual é simultaneamente global
e regional, exigindo
diálogo constante entre sistemas jurídicos para equilibrar inovação, comércio e
cultura.
CAPÍTULO VI
Portugal
Enquadramento Constitucional e
Legal
A Constituição da República Portuguesa (CRP)
consagra a protecção da criação intelectual em diversos dispositivos:
·
Artigo
42.º – Liberdade de
criação cultural e científica, garantindo aos autores a protecção das suas
obras.
·
Artigo
73.º – Direito à
educação e à cultura, assegurando o acesso ao conhecimento e à fruição
cultural.
·
Artigo
61.º – Liberdade de
iniciativa económica, que inclui a tutela da inovação e da propriedade
industrial.
Este enquadramento constitucional estabelece uma
base sólida para a protecção da propriedade intelectual, articulando direitos
individuais (autoria, criação) com valores coletivos (acesso, cultura, desenvolvimento
económico).
Código da Propriedade Industrial
(Decreto-Lei n.º 110/2018)
O Código
da Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/2018, regula patentes, modelos de
utilidade, marcas, logótipos, desenhos e modelos, denominações de origem e
indicações geográficas.
·
Patentes: duração de 20 anos, requisitos de
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
·
Modelos
de utilidade:
protecção simplificada para invenções com menor grau inventivo, duração de 10
anos.
·
Marcas: sinais distintivos com função de
identificação e diferenciação, duração de 10 anos renováveis.
·
Indicações
geográficas e denominações de origem: protecção de produtos ligados a territórios
específicos, com forte impacto em vinhos e produtos agrícolas.
·
Concorrência
desleal: proibição
de actos susceptíveis de causar confusão ou aproveitamento parasitário.
O CPI harmoniza-se com normas da UE e tratados
internacionais, assegurando coerência normativa e competitividade.
Direitos de Autor e Direitos
Conexos (Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos)
O Código
do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85 e
sucessivamente actualizado, regula a protecção das obras literárias, artísticas
e científicas.
·
Direitos
morais: paternidade,
integridade da obra, direito de retirada.
·
Direitos
patrimoniais:
reprodução, distribuição, comunicação pública, adaptação.
·
Duração: regra geral de 70 anos após a morte do
autor.
·
Direitos
conexos: protecção
de artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e organismos de
radiodifusão.
·
Excepções
e limitações: uso
privado, citações, ensino e investigação, bibliotecas e arquivos.
Este regime articula-se com a Convenção de Berna e
com directivas europeias, assegurando protecção robusta e adaptada ao ambiente
digital.
Jurisprudência Relevante dos
Tribunais Superiores
A jurisprudência portuguesa tem desempenhado papel
essencial na interpretação da propriedade intelectual:
·
Supremo
Tribunal de Justiça (STJ): decisões sobre contrafação de marcas, delimitação de direitos de autor em
software, protecção de indicações geográficas.
·
Tribunal
da Relação de Lisboa: casos sobre concorrência desleal e uso indevido de sinais distintivos.
·
Tribunal
Constitucional:
ponderação entre direitos de autor e liberdade de expressão/informação,
garantindo proporcionalidade.
Estes precedentes consolidam a aplicação prática
das normas e contribuem para a harmonização com padrões internacionais.
Papel do INPI e Cooperação
Internacional
O Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é a autoridade administrativa responsável pela
gestão da PI em Portugal.
·
Funções: registo de patentes, marcas, desenhos,
modelos e indicações geográficas; promoção da inovação; apoio a empresas e
universidades.
·
Cooperação
internacional:
participação activa na OMPI, OMC, EUIPO e EPO; integração em redes europeias e
lusófonas.
·
Serviços
digitais:
plataformas online para pedidos e acompanhamento de processos, reforçando
transparência e eficiência.
O INPI desempenha papel estratégico na
internacionalização da economia portuguesa e na difusão da cultura de inovação.
Desafios Contemporâneos:
Digitalização, IA e Protecção de Dados
Portugal enfrenta desafios emergentes na
intersecção entre PI e tecnologia:
·
Digitalização: adaptação do CDADC às plataformas
digitais, combate à pirataria online, regulação de streaming e conteúdos
gerados por utilizadores.
·
Inteligência
Artificial:
discussão sobre autoria e titularidade de obras criadas por sistemas autónomos;
necessidade de clarificação normativa.
·
Protecção
de dados:
articulação entre PI e Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD),
especialmente em bases de dados e big data.
·
Economia
do conhecimento:
incentivo à inovação tecnológica e científica, equilibrando exclusividade com
acesso equitativo.
Estes desafios exigem actualização legislativa e
diálogo internacional, assegurando que Portugal se mantenha competitivo e
alinhado com valores de justiça e inclusão.
Síntese
O sistema português de propriedade intelectual assenta
em:
· Fundamentos constitucionais sólidos,
·
Códigos
especializados (CPI e CDADC),
· Jurisprudência esclarecedora,
· Instituições eficazes (INPI),
·
Capacidade
de enfrentar desafios digitais e tecnológicos.
Portugal posiciona-se como jurisdição de
referência na lusofonia, articulando tradição jurídica com inovação
contemporânea.
CAPÍTULO VII
Macau
Enquadramento Jurídico sob a RAEM
Macau, enquanto Região Administrativa Especial da
República Popular da China, goza de autonomia legislativa e judicial em matéria
de propriedade intelectual, nos termos da Lei Básica da RAEM.
·
Artigo
128.º da Lei Básica: garante a manutenção de um regime próprio de protecção da propriedade
intelectual, distinto do sistema da China continental.
·
Autonomia
normativa: Macau
conserva competência para legislar sobre propriedade industrial e direitos de
autor, assegurando continuidade do sistema herdado do período português.
·
Integração
internacional: Macau
pode aplicar tratados internacionais de PI mediante extensão pela China,
preservando coerência com normas globais.
Lei n.º 43/99/M - Regime da
Propriedade Industrial
A Lei
n.º 43/99/M, de 3 de
Agosto, estabelece o regime da propriedade industrial em Macau.
·
Âmbito: patentes, modelos de utilidade, marcas,
logótipos, desenhos e modelos industriais, denominações de origem e indicações
geográficas.
·
Patentes: duração de 20 anos, requisitos de
novidade, actividade inventiva e aplicação industrial.
·
Modelos
de utilidade:
protecção simplificada, duração de 10 anos.
·
Marcas: sinais distintivos com função de
identificação, duração de 10 anos renováveis.
·
Indicações
geográficas:
protecção de produtos ligados a territórios específicos, com relevância para
gastronomia e vinhos.
·
Concorrência
desleal: proibição
de actos susceptíveis de causar confusão ou aproveitamento parasitário.
Este regime é inspirado no Código da Propriedade Industrial
português, mas adaptado ao contexto jurídico e económico da RAEM.
Lei n.º 5/99/M - Direitos de
Autor e Direitos Conexos
A Lei
n.º 5/99/M, de 20 de
Dezembro, regula os direitos de autor e direitos conexos em Macau.
·
Direitos
morais: paternidade,
integridade da obra, direito de retirada.
·
Direitos
patrimoniais:
reprodução, distribuição, comunicação pública, adaptação.
·
Duração: regra geral de 50 anos após a morte do
autor (prazo inferior ao regime português, mas alinhado com padrões mínimos da
Convenção de Berna).
·
Direitos
conexos: protecção
de artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e organismos de
radiodifusão.
·
Excepções: uso privado, citações, ensino e
investigação, bibliotecas e arquivos.
Este regime assegura a protecção das criações
intelectuais, articulando tradição lusófona com compromissos internacionais.
Relação com a China e Tratados
Aplicáveis
·
Extensão
de tratados internacionais: A República Popular da China, como Estado soberano, pode estender a
aplicação de tratados de PI a Macau.
·
Tratados
aplicáveis:
Convenção de Paris, Convenção de Berna, Acordo TRIPS, PCT, Tratado de
Marraquexe, entre outros.
·
Autonomia
prática: embora
Macau aplique tratados internacionais, mantém órgãos próprios de registo e
jurisdição, assegurando independência procedimental.
·
Integração
com a China:
cooperação crescente em enforcement e combate à contrafacção, especialmente em
sectores de luxo e turismo.
Cooperação com a OMPI e Lusofonia Jurídica
·
OMPI: Macau participa em programas de
capacitação e harmonização legislativa, beneficiando de apoio técnico e
formação.
·
Lusofonia
jurídica: a herança
portuguesa confere a Macau um papel singular na ponte entre sistemas jurídicos
lusófonos e asiáticos.
·
Potencial
de integração: Macau
pode servir como plataforma de difusão de normas de PI para países da CPLP,
reforçando a cooperação cultural e económica.
Jurisprudência Local e Desafios de Harmonização
·
Tribunais
da RAEM: têm
decidido casos de contrafacção de marcas, pirataria de software e protecção de
direitos de autor em espetáculos públicos.
· Desafios:
o
Harmonização
com padrões internacionais, especialmente em matéria de direitos digitais e
protecção de dados.
o
Adaptação
às exigências da economia digital e da inteligência artificial.
o
Combate
à contrafacção em sectores estratégicos (luxo, turismo, jogos).
o
Necessidade
de reforço da cooperação judicial com a China continental e com jurisdições
lusófonas.
Síntese
O sistema de propriedade intelectual de Macau
caracteriza-se por:
·
Autonomia
legislativa sob a RAEM,
·
Leis
próprias (43/99/M e 5/99/M),
·
Aplicação
de tratados internacionais via extensão da China,
·
Participação
activa na OMPI e na lusofonia jurídica,
·
Jurisprudência
local que enfrenta desafios de harmonização e digitalização.
Macau posiciona-se como jurisdição híbrida,
articulando tradição portuguesa, integração internacional e adaptação às
exigências contemporâneas da economia global.
CAPÍTULO VIII
Desafios contemporâneos e
perspetivas futuras
Inteligência artificial e criação
autónoma
·
Autoria humana como requisito jurídico: Em diversos
ordenamentos e orientações administrativas recentes, mantém-se a exigência de
autoria humana para protecção autoral, rejeitando o registo de obras criadas de
forma autónoma por sistemas de IA. Decisões nos Estados Unidos negaram
protecção a obras sem intervenção humana suficiente, e posicionamentos
semelhantes surgiram em esferas administrativas, consolidando a necessidade de
“toque pessoal” do autor para elegibilidade. Este debate tem implicações
directas na definição de titularidade e nos limiares de originalidade quando a
IA actua como ferramenta criativa ampliada.
·
Uso de obras protegidas no treino de modelos: O machine learning recorre a grandes corpora de
textos, imagens e sons, muitas vezes protegidos; a legalidade do uso para
treino envolve análise de excepções (como fair use em common law) e
licenciamento, além de questões de transparência e limites de extracção. Cenários
como o “The Next Rembrandt” expõem tensões entre inovação e direitos autorais e
reforçam a necessidade de parâmetros de responsabilidade e atribuição quando há
hibridização entre criação humana e computacional.
·
Patenteabilidade e inventividade em IA: A avaliação de novidade e não evidência em
soluções de IA frequentemente combinatórias de técnicas pré-existentes desafia
escritórios de PI e tribunais, exigindo critérios mais finos para distinguir
mera automatização de resultados inventivos. A discussão abrange ainda o
eventual reconhecimento (ou recusa) de IA como inventora em patentes, com
impacto na arquitectura de incentivos e na segurança jurídica para
transferência de tecnologia.
·
Governança e ética: Recomenda-se o reforço de transparência, accountability e salvaguardas de
dados (incluindo privacidade e provenance) e a adopção de modelos de
licenciamento e rastreabilidade tecnológica para obras assistidas por IA,
balizando uma convivência produtiva entre inovação e protecções autorais e
industriais.
Blockchain e
registo descentralizado
·
Prova de anterioridade e integridade: Blockchains oferecem um registo distribuído,
transparente e com forte imutabilidade presumida, possibilitando a ancoragem de
hashes que comprovam a existência e a integridade de obras e sinais distintivos
em momentos específicos sem expor conteúdo. Isto pode fortalecer a prova de
anterioridade em disputas e reduzir custos de verificação em marcas e desenhos.
·
Automação de licenças e royalties: Contratos inteligentes podem operacionalizar
licenciamento, repartição automática de receitas e restrições de uso,
aumentando eficiência e reduzindo fricção transacional. Contudo, persistem
desafios de interoperabilidade com sistemas oficiais (EUIPO, OMPI), privacidade
e escalabilidade, e a necessidade de padrões para integração com cadastros
públicos e bases globais (WIPO Global Brand/Design Database).
·
Casos e aplicação prática: A literatura técnica e de mercado tem apontado a utilidade de blockchain
para melhorar gestão de activos imateriais, tokenização e mercados secundários
de patentes, além de servir como evidência em litígios complexos sobre
anterioridade e autoria com exemplos pedagógicos na disputa Apple vs. Samsung,
que ilustra o valor de registos robustos e auditáveis.
Biotecnologia e
patentes éticas
·
Âmbitos e limites de protecção: A biotecnologia ampliou a fronteira de protecção
(processos e produtos farmacêuticos, microrganismos, melhoramentos vegetais),
ao mesmo tempo que consolidou exclusões (contrariedade à moral/ordem pública, certas
formas de vida), sobretudo após a integração de padrões mínimos via TRIPS. A
calibragem do que é patenteável continua a ser central para equilíbrio entre
incentivo e acesso.
·
Ética, acesso e “biotecnologia roxa”: Debates sobre comercialização do corpo,
engenharia genética e clonagem cruzam PI com bioética, privacidade genética e
não discriminação. A noção de “biotecnologia roxa” sintetiza a tensão entre
proteger inovação e assegurar acesso justo a terapias e tecnologias críticas,
pedindo salvaguardas regulatórias, transparência e mecanismos de excepção
proporcionais.
·
Ecossistemas de inovação e universidades: Evidências empíricas mostram elevada participação
de universidades em depósitos de patentes biotecnológicas, com forte
protagonismo em farmacêutica e agro, e relevância de parcerias
público-privadas. O desenho de políticas tem impacto directo na qualidade das
patentes e na tradução de depósitos em produtos e serviços com impacto social.
Equidade no acesso à propriedade intelectual
·
Balizar exclusividade e direitos humanos: Sistemas de PI devem compatibilizar estímulos à
criação com direitos à ciência, cultura, educação e saúde, recorrendo a
limitações, excepções e flexibilidades (como licenças compulsórias e
importações paralelas). A crítica contemporânea chama a atenção para riscos de
protecção excessiva que ampliem desigualdades e bloqueiem difusão do
conhecimento em países em desenvolvimento.
·
Indicadores globais e assimetrias: Relatórios recentes da OMPI mostram expansão
contínua dos depósitos de patentes, com forte concentração na Ásia e
crescimento autóctone, o que, se por um lado revela dinamismo, por outro
reforça a preocupação com capacidade de transformar depósitos em inovação
aplicada e com a distribuição equitativa de benefícios.
·
Financiamento e valorização de intangíveis: Iniciativas para uso de PI como garantia de
crédito apontam caminhos para inclusão financeira de startups e PMEs intensivas
em intangíveis; mas exigem metodologias robustas de avaliação e infra-estrutura
regulatória, com a OMPI a lançar estudos sobre IP Finance e Estados a
promoverem convergência institucional para reconhecer valor económico dos
activos imateriais.
Propostas de reforma e tendências globais
·
Clarificar autoria e inventividade na era da IA: Recomenda-se afirmar o requisito de
intervenção humana significativa para protecção autoral; estabelecer guias para
avaliação de inventividade em resultados assistidos por IA; criar padrões de
diligência, transparência e documentação do uso de dados e modelos, com regimes
de licenciamento compatíveis com treino e outputs híbridos.
·
Infra-estrutura de confiança para registo e gestão: Integrar blockchains com cadastros
oficiais, padrões abertos e APIs; desenvolver contratos inteligentes
auditáveis; conciliar privacidade (dados pessoais, segredos de negócio) com
verificabilidade. Promover interoperabilidade com bases OMPI/EUIPO e
reconhecimento probatório transnacional.
·
Biotecnologia com salvaguardas éticas: Adoptar comités de ética vinculantes na fase de
patenteabilidade sensível; fortalecer mecanismos de acesso (licenças
obrigatórias, pools voluntários); proteger conhecimentos tradicionais e
combater biopirataria com instrumentos de disclosure de origem e repartição de
benefícios.
·
Agenda de desenvolvimento e acesso: Consolidar excepções em educação, bibliotecas e
acessibilidade (Marraquexe); reforçar instrumentos regionais e cooperação
técnica; adoptar métricas de “impacto social” para avaliar reformas em PI e
orientar políticas públicas. Fomentar capacitação institucional para
transformar depósitos em inovação aplicada e ampliar a partilha de valor com
comunidades e mercados emergentes.
·
Governança baseada em evidência: Usar indicadores internacionais para calibrar
políticas; encorajar transparência regulatória e avaliação de desempenho em
enforcement e serviço público; promover fóruns multistakeholder para resolução
de tensões entre inovação, comércio e direitos fundamentais.
CAPÍTULO IX
Desafios Contemporâneos e
Perspectivas Futuras
Este capítulo evidencia como a propriedade intelectual se
encontra em plena transformação, pressionada por novas tecnologias e por
exigências sociais de equidade.
·
Inteligência Artificial: coloca em causa a noção clássica de autoria e inventividade, exigindo
clarificação normativa sobre obras e invenções geradas autonomamente, bem como
regras de transparência no uso de dados para treino de modelos.
·
Blockchain: surge como ferramenta para registo descentralizado, prova de
anterioridade e gestão automatizada de licenças e royalties, mas carece de
integração com sistemas oficiais e padrões internacionais.
·
Biotecnologia: amplia fronteiras da patenteabilidade, mas levanta dilemas éticos sobre
manipulação genética, acesso a medicamentos e protecção de conhecimentos
tradicionais, impondo salvaguardas regulatórias e mecanismos de excepção.
·
Equidade no acesso: reforça a necessidade de compatibilizar exclusividade com direitos
humanos (educação, cultura, saúde), recorrendo a flexibilidades como licenças
compulsórias e excepções para bibliotecas e ensino.
·
Propostas de reforma: incluem clarificação da autoria em IA, integração tecnológica de
registos, comités de ética vinculantes em biotecnologia, métricas de impacto
social e fóruns multilaterais para equilibrar inovação, comércio e direitos
fundamentais.
Em síntese, o capítulo mostra que o futuro da propriedade intelectual
dependerá de uma governança adaptativa, capaz de equilibrar inovação
tecnológica com justiça social, assegurando que a PI seja instrumento de
desenvolvimento sustentável e inclusivo.
CAPÍTULO X
Epílogo
Síntese dos principais desafios e oportunidades
O percurso desenvolvido ao longo desta obra
evidencia que a propriedade
intelectual se
encontra no centro das transformações económicas, culturais e tecnológicas
globais.
· Desafios:
o
A tensão
entre exclusividade e acesso, especialmente em áreas críticas como saúde
pública, educação e cultura.
o
A
adaptação das normas clássicas às novas tecnologias (inteligência artificial,
blockchain, biotecnologia).
o
A
necessidade de harmonização entre sistemas jurídicos regionais e nacionais,
evitando fragmentação normativa.
o
O
combate à contrafacção e pirataria em escala transnacional, que exige
cooperação institucional robusta.
· Oportunidades:
o
A PI
como motor de inovação, competitividade e desenvolvimento sustentável.
o
A
valorização de activos intangíveis como instrumentos de financiamento e
inclusão económica.
o
A
integração da PI em agendas de direitos humanos, diversidade cultural e
equidade social.
o
O
reforço da cooperação internacional, com destaque para a OMPI, OMC e UNESCO,
que oferecem plataformas de diálogo e harmonização.
Propostas para uma governança mais equitativa
A governança da propriedade intelectual deve
evoluir para equilibrar inovação com justiça social e inclusão:
·
Clarificação
normativa: definir
critérios transparentes para autoria em obras assistidas por IA e inventividade
em patentes tecnológicas.
·
Integração
tecnológica:
promover interoperabilidade entre registos oficiais e sistemas descentralizados
(blockchain), assegurando confiança e acessibilidade.
·
Ética
e sustentabilidade:
reforçar mecanismos de avaliação ética em biotecnologia e garantir repartição
justa de benefícios, sobretudo em conhecimentos tradicionais e recursos
genéticos.
·
Flexibilidades
proporcionais:
consolidar licenças compulsórias, excepções educativas e acessibilidade
cultural, garantindo que exclusividade não se torne barreira ao desenvolvimento
humano.
·
Participação
multilateral:
fomentar fóruns inclusivos, com presença de países em desenvolvimento,
comunidades culturais e sociedade civil, assegurando que a PI seja instrumento
de cooperação e não de exclusão.
·
Indicadores
de impacto social:
adoptar métricas que avaliem não apenas depósitos e registos, mas também a
efectiva contribuição da PI para bem-estar, inovação aplicada e equidade.
Reflexão sobre o papel da lusofonia no sistema internacional
A lusofonia
jurídica ocupa
posição singular na arquitectura global da propriedade intelectual:
·
Herança
normativa comum:
Portugal e Macau, juntamente com os países da CPLP, partilham tradições
jurídicas que facilitam a harmonização e a cooperação técnica.
·
Plataforma
cultural e linguística: a língua portuguesa funciona como veículo de difusão normativa e como
ponte entre continentes, permitindo que a PI seja instrumento de integração
cultural e económica.
·
Potencial
de liderança: a CPLP
pode afirmar-se como espaço de experimentação de soluções equitativas,
valorizando conhecimentos tradicionais, expressões culturais e inovação
tecnológica em contextos emergentes.
·
Integração
internacional: a
participação activa da lusofonia em organismos como a OMPI e a UNESCO reforça a
sua capacidade de influenciar agendas globais, trazendo para o centro do debate
valores de solidariedade, diversidade e justiça.
O Direito Internacional da Propriedade Intelectual
enfrenta o desafio de conciliar
inovação com equidade, exclusividade com acesso, e tecnologia com cultura. A sua evolução
dependerá de uma governança adaptativa, multilateral e ética. A lusofonia, pela
sua tradição jurídica e pela sua vocação cultural, pode desempenhar papel
decisivo na construção de um sistema internacional mais justo, inclusivo e
sustentável, onde a propriedade intelectual seja não apenas instrumento de
mercado, mas também expressão
de humanidade e solidariedade global.
Bibliografia
Doutrina
Portuguesa
·
Oliveira
Ascensão, José de - Direito
da Propriedade Intelectual, Coimbra Editora, várias edições.
·
Carvalho,
Nuno Pires de - A
Propriedade Intelectual e o Comércio Internacional, Almedina.
·
Miranda,
Jorge - Manual
de Direito Constitucional, com reflexões sobre direitos culturais e
autorais.
·
Gomes
Canotilho, J.J. / Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, com comentários
sobre artigos relativos à criação intelectual.
·
INPI
Portugal - Relatórios
anuais e guias práticos sobre patentes, marcas e desenhos industriais.
Doutrina
Brasileira
·
Denis
Borges Barbosa - Curso
de Direito da Propriedade Intelectual, Lumen Juris.
·
Newton
Silveira - Propriedade
Intelectual: Estudos de Direito, Revista dos Tribunais.
·
José
Carlos Tinoco Soares - Direito Autoral no Brasil, Saraiva.
·
Maristela
Basso - Direito
Internacional da Propriedade Intelectual, Atlas.
·
INPI
Brasil - Relatórios
técnicos e pareceres sobre inovação e patentes.
Doutrina
Europeia
· Cornish, William / Llewelyn, David / Aplin, Tanya - Intellectual Property: Patents, Copyright, Trade Marks and Allied Rights, Sweet & Maxwell.
·
Stamatoudi,
Irini / Torremans, Paul - EU Copyright Law, Edward Elgar.
· Geiger, Christophe - Research Handbook on Intellectual Property and Human Rights, Edward Elgar.
· European Patent Office (EPO) - Annual Reports e Case Law of the Boards of Appeal.
· EUIPO – Guidelines for Examination of EU Trade Marks and Designs.
Doutrina
Internacional
· Gervais, Daniel J. - The TRIPS Agreement: Drafting History and Analysis, Sweet & Maxwell.
· WIPO (OMPI) – World Intellectual Property Indicators, relatórios anuais.
· Reichman, Jerome / Dreyfuss, Rochelle - Intellectual Property at the Edge: The Contested Contours of IP, Cambridge University Press.
·
Yu,
Peter K. – artigos
sobre PI e desenvolvimento em revistas internacionais.
· UNESCO - Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage (2003) e relatórios correlatos.
Artigos Científicos, Teses e Pareceres
·
Teses
de doutoramento em Direito da Propriedade Intelectual nas universidades de
Lisboa, Coimbra, São Paulo e Oxford.
·
Artigos
publicados em revistas como International Review of Intellectual Property
and Competition Law (IIC), Journal of Intellectual Property Law &
Practice (JIPLP), Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Revista de Direito da Concorrência e da Propriedade
Intelectual.
·
Pareceres
do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República em Portugal sobre PI
e direitos de autor.
·
Estudos
da Fundação Getúlio Vargas (Brasil) sobre inovação e PI.
Documentos
Oficiais
· OMPI (WIPO):
o World Intellectual Property Indicators (relatórios anuais).
o WIPO Development Agenda e Model Laws.
· OMC (WTO):
o
TRIPS
Agreement e relatórios
de painéis de resolução de litígios.
· UNESCO:
o Universal Copyright Convention (1952).
o Convention for the Safeguarding of Intangible Cultural Heritage (2003).
·
INPI
(Portugal e Brasil): relatórios estatísticos, guias práticos e pareceres técnicos.
·
SIPO
/ CNIPA (China):
relatórios sobre evolução normativa e estatísticas de depósitos de patentes e
marcas.
· USPTO (Estados Unidos): Annual Reports, Manual of Patent Examining Procedure (MPEP), Trademark Manual of Examining Procedure (TMEP).

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