quinta-feira, outubro 23, 2025

O Imperialismo dos Direitos Humanos: Uma lição a não esquecer



JORGE RODRIGUES SIMÃO

2025



Desde o direito romano das gentes até às suas interpretações no Ocidente moderno e contemporâneo, percorre-se um caminho tortuoso que desemboca na ilusão do princípio de equidade nas relações entre Estados. Do ideal da razão humana regressamos ao domínio da força. A tragédia complexa e confusa que, em diferentes regiões e segundo lógicas diversas, está a devastar os nossos dias e este mundo cada vez menos compreensível, parece ter tido pelo menos um mérito o de que abalou uma das mais difundidas ilusões do pós-guerra. A ilusão de uma “ordem jurídica e política mundial” fundada no direito, na legalidade internacional e nos chamados direitos humanos, concebida como destino irreversível da humanidade. Uma quimera, que revela toda a sua inconsistência.

Um projecto deste tipo havia inspirado a criação da Sociedade das Nações, fortemente promovida pelo presidente americano Wilson após a I Guerra Mundial (embora os próprios Estados Unidos nunca tenham aderido), e foi relançado com a fundação, no pós-II Guerra Mundial, das Nações Unidas. Com o fim da Guerra Fria e da divisão do mundo em dois blocos opostos, num universo finalmente pacificado pelas guerras e onde a multiplicação das relações negociais parecia substituir, nas relações entre nações, o uso da força, acreditou-se por um momento que esse projecto poderia enfim concretizar-se. “Fim da história”: incerteza, ameaça e violência substituídas pelo reino das regras e dos direitos humanos. Desde os tempos dos romanos que, se não inventaram o direito, inventaram uma abordagem racional, quase “científica”, na sua elaboração e aplicação, separando-o das outras esferas do controlo social, como a religião ou as normas de etiqueta em que se questiona a existência, na consciência humana, de certos princípios fundamentais, partilhados por todos, cuja presença seria inerente à própria vida em sociedade.


Os juristas romanos falavam de um “direito natural” que a natureza teria instilado na alma humana, originando a ideia de regras elementares que todos deveriam respeitar. Contudo, essas teorias nunca tiveram eficácia prática, não tendo sido traduzidas em normas activas do direito vigente, permanecendo essencialmente como referências filosóficas. Bem mais relevante para os romanos foi outro conceito, aquele que designava a parte mais inovadora do seu sistema jurídico e que consideravam corresponder a necessidades elementares e práticas comuns a todos os povos que é o direito das gentes. Com base neste, estenderam tais regras a todas as comunidades absorvidas e governadas, aplicando-as a cada indivíduo sob a sua soberania, independentemente do direito particular da cidade a que pertencesse. Estas instituições eram vistas como constitutivas de um ius gentium, um direito dos povos; universal, tal como era o próprio império romano.

Assim, a certeza de regras jurídicas comuns a todos os membros das diversas comunidades que integravam o sistema político romano ainda que continuassem a viver segundo os seus costumes particulares sobretudo a partir da reorganização do poder por Augusto, foi a condição que permitiu o extraordinário desenvolvimento dos tráficos comerciais em todo o âmbito de influência romana, com consequente prosperidade económica. Nesse período que o historiador do século XVIII Edward Gibbon descreve como o momento de “máxima felicidade” da humanidade (embora ciente de que então vigorava amplamente o sistema da escravatura), o imenso prestígio do imperador romano e do direito fundado na sua autoridade, comum a todos os povos do império, assumiu um valor de referência generalizado, destinado a sobreviver à própria história de Roma como mito e nostalgia persistente.

Atravessando os longos séculos marcados pelas invasões bárbaras e pela lenta transformação dos povos europeus nos embriões das novas entidades territoriais e políticas que estiveram na origem das várias identidades nacionais, esse legado ressurgiu com força entre o fim da Idade Média e os primórdios da Idade Moderna, como património comum a evocar na construção de uma nova história. Identificado sobretudo com o antigo direito romano, cuja memória foi preservada pela grande compilação realizada pelos juristas do imperador Justiniano, no século VI. Conjunto de regras escritas reunidas nas suas famosas obras, o Código e o Digesto cuja redescoberta e estudo foram o ponto de partida das novas universidades “inventadas” na Itália do primeiro Renascimento, a começar por Bolonha, fundada no final do século XI. O direito romano tornou-se assim o direito comum.

Não o único vigente nos múltiplos Estados e principados europeus, mas o direito comum do mito da unidade imperial, revivido pelos grandes príncipes alemães em luta com o papa, naquela história que estudámos sumariamente no liceu. É, no entanto, a uma utilização completamente nova do legado romano que aqui se faz referência, evocando uma das épocas mais atrozes da história europeia, entre os séculos XVI e XVII, devastada por guerras particularmente ferozes por serem travadas em nome de Deus de católicos contra protestantes, todos a defender-se da ameaça do império otomano, enquanto perseguiam judeus e muçulmanos que viviam entre eles. As guerras que irromperam na Europa desenrolaram-se sem regras, devastando regiões inteiras, multiplicando-se com a expansão das potências europeias para além dos oceanos, através das conquistas coloniais. Foi então que os Estados europeus começaram a combater sistematicamente também no mar, em confrontos sem quartel pelo controlo das rotas comerciais.

Nos conflitos territoriais, os exércitos profissionais onde amigos e inimigos pouco se distinguiam saqueavam e destruíam todas as terras por onde passavam. Os próprios soberanos que os contratavam só lhes podiam impor alguma disciplina com cautela e dentro de limites estreitos, e apenas se não houvesse salários em atraso. No mar, a guerra confundia-se frequentemente com pirataria pura e simples. Foi uma grande operação científica, mas também bem concebida do ponto de vista prático, pois conseguiu articular-se com os interesses obtendo assim o apoio indispensável dos Estados nacionais. Iniciada no final do século XVI, envolveu juristas e teólogos de várias nações como espanhóis, holandeses, italianos, ingleses, protestantes e católicos. O seu objectivo era construir doutrinariamente um novo tipo de direito, designado com a antiga terminologia romana, o direito das gentes.

Mas, como tantas vezes acontece na história, antigos conceitos foram preenchidos com conteúdos completamente novos. Este ius gentium passou a ser entendido como inscrito na natureza humana por vontade divina, referência comum a católicos e protestantes, num mundo onde a religião ainda tinha um peso determinante. A génese e a difusão destas novas concepções não foram obra das cortes ou dos soberanos, mas dos grandes centros de pensamento e saber que eram as universidades. Muitas vezes situadas em países pequenos, como a Holanda, mas profundamente envolvidas nas novas formas de expansionismo extra-europeu, onde a criação de um sistema elementar de regras entre os Estados podia significar a existência ou não de um espaço de acção sem riscos demasiado elevados para ser enfrentado.

A inovação deste esforço só pode ser plenamente compreendida se reconhecermos que a referência ao direito das gentes, com um conteúdo radicalmente distinto daquele atribuído pelos romanos, tal como foi desenvolvido pelos juristas dos séculos XVI e XVII, visava criar uma realidade completamente nova. Até então, como na experiência original romana, a própria ideia de direito enquanto conjunto de regras estava associada à existência de uma autoridade geral a cidade-Estado, o império ou o soberano absoluto das monarquias helenísticas que lhe conferia eficácia dentro de um determinado território e perante uma comunidade específica. Com os seus juízes a aplicá-lo aos casos concretos, e com o uso da força contra quem violasse as leis da cidade. Nas relações entre poderes soberanos, podiam existir práticas consuetudinárias e vínculos recíprocos, introduzidos por acordos considerados vinculativos com base em deveres de lealdade mútua, a fides romana. Mas a dureza dos confrontos de força estava sempre pronta a ressurgir com a violação arbitrária desses acordos, dando origem a novas guerras. Não existia qualquer sanção em caso de quebra da fides, pois faltava um poder superior, acima dos príncipes territoriais e dos soberanos, que pudesse julgar razões e culpas.

Com as novas ideias dos juristas do século XVII, ao lado dos ordenamentos jurídicos vigentes, sustentados pela força material dos Estados, introduzia-se uma outra ideia, mais incerta, de um direito “diferente”. Também originado pela vontade divina, mas que não se identificava com o vasto património jurídico dos antigos romanos, consagrado na obra de Justiniano, que se tornou o fundamento dos sistemas jurídicos dos Estados europeus e da própria Igreja de Roma. Este novo direito era produto do saber dos juristas e teóricos, baseado em princípios gerais por eles elaborados, recorrendo às tradições jurídicas correntes. Acrescentava-se sem se substituir aos sistemas jurídicos vigentes, operando não dentro deles, mas com o propósito de regular as relações entre Estados soberanos. Fundava-se na convicção, ainda fortemente enraizada na tradição religiosa da época, de que na razão de cada ser humano estava inscrita uma série de ideias e valores de origem divina.

Os juristas do século XVII sustentaram que, a partir dessa consciência do justo e do injusto inscrita na razão humana, era possível extrair verdadeiras regras jurídicas reflexo da vontade divina. Dos princípios gerais que elaboraram, derivaram normas legais concretas, as regras do novo ius gentium. Tratava-se de uma construção artificial, fruto da pura inteligência dos juristas da época, moldada pela linguagem e lógica do antigo direito romano, mas tornada eficaz pela conveniência generalizada dos Estados envolvidos na guerra e na paz na Europa. Dessa forma, conseguiu-se definir um campo de jogo rudimentar, com regras e árbitros próprios, garantindo condições iguais para todos e limitando os riscos imprevisíveis decorrentes da conduta arbitrária de cada um. Como esse jogo era sempre incerto e qualquer jogador podia perder tudo, auto-impor limites à própria liberdade de acção surgia como uma garantia para todos.

Esta lógica foi ganhando adesão e impôs-se progressivamente, derivando, no fundo, da necessidade de sobrevivência que o uso destrutivo da guerra colocava em risco constante. Num sistema de relações entre Estados europeus, pacíficos ou hostis, em que os aspectos económicos ganhavam importância crescente, criando as condições para a extraordinária “invenção” do capitalismo, o direito das gentes foi o resultado de um cálculo de custo-benefício. A liberdade sem restrições de cada um acabava por aumentar demasiado os riscos de todos, limitando os benefícios de poucos. Por isso, esse direito assumiu uma importância crescente, dando origem a um sistema de regras que está na base do direito internacional. Neste contexto, as lógicas de arbitragem voluntária entrelaçavam-se com os modelos próprios dos tribunais, com juízes investidos de uma autoridade que não derivava de um poder soberano superior inexistente, mas do consentimento voluntário das partes, vinculadas, em última instância, pelo seu próprio interesse em garantir alguma certeza nas relações que, de outro modo, seriam apenas confrontos brutais de força, com toda a incerteza que isso implicava para cada jogador.

Este processo de alargamento dos espaços negociais e do terreno dos acordos, em contraste com o uso indiscriminado da violência bélica, foi-se concretizando sem a autoridade superior de um poder soberano, expandindo progressivamente e com relativo sucesso à própria esfera do direito, num percurso ininterrupto que se prolonga até aos nossos dias. Sempre perturbado por violações, claro está, pois quem perdia ou ganhava demasiado acabava, por motivos opostos, excesso de confiança ou desespero por abandonar as regras e princípios, recorrendo à força bruta. Mas sempre retomado, após cada crise, pela utilidade comum. É uma das páginas mais fascinantes da história das instituições e da ciência jurídica na Europa moderna, onde se destacou de forma exemplar a inteligência e o saber de alguns dos maiores juristas da época, que se colocaram, de certo modo, acima da sua própria comunidade política, regulando e julgando conflitos entre poderes soberanos e entre Estados, sobretudo em virtude do seu conhecimento e estatuto intelectual invulgar. Com o fim das guerras religiosas, marcado pela Paz de Vestfália, as doutrinas jusnaturalistas consolidaram-se em sistemas embrionários de direito internacional, com regras do mar e corpos normativos próprios.

E com a contribuição de outros juristas brilhantes, como Alberico Gentili, entre Itália e Inglaterra, foi-se preparando o direito da guerra e da paz, antecipando o triunfo da Idade das Luzes na Europa do século XVIII. Foi então que grande parte das elites europeias se envolveu num colossal ensaio social, destinado a assegurar e acelerar, através da civilização generalizada das sociedades europeias, o seu progresso espiritual e material, numa visão optimista que se estendia à humanidade como um todo. É, sem dúvida, uma história que contribuiu decisivamente para dar substância a uma das épocas mais elevadas da civilização europeia, da qual derivou também uma relativa estabilização das sempre voláteis relações entre Estados nacionais, abrindo um novo caminho inovador que também tinha raízes no pensamento religioso e na teologia cristã.

Não parece demasiado grande a transição da ideia de uma lei divina, inscrita no coração dos homens e acessível através do uso correcto da razão, para a convicção de que a lei natural que deveria governar os homens estava impressa profundamente na sua razão, deixando de lado a questão de saber se essa origem era divina ou natural. Mas essa transição, entre os séculos XVI e XVIII, marcou o triunfo do racionalismo iluminista, com a ideia de que as sociedades deveriam ser governadas segundo a razão e por regras nela fundadas. A solene afirmação dos direitos inerentes a cada ser humano na Declaração de Independência americana, redigida por Jefferson, e os “princípios imortais” da Revolução Francesa continuam a lembrar-nos o momento de ruptura em que o longo percurso do jusnaturalismo e do jusracionalismo moderno deu frutos, assinalando uma extraordinária aceleração daquele que então se designava por “processo de civilização”, cuja prossecução, por consenso unânime, era vista como o maior título de legitimação dos governantes. 

Esta brevíssima síntese histórica para chegar ao ponto que realmente interessa, o de evidenciar que este conjunto de teorias e tentativas práticas de regulamentar as relações entre indivíduos e Estados independentes constituiu uma grande construção intelectual, alicerçada em pressupostos parcialmente religiosos e afirmados a priori sobre a “verdadeira” natureza humana. Trata-se de uma história essencialmente europeia e americana, ainda que tenha envolvido muitos outros povos e sociedades. Em primeiro lugar, porque as construções conceptuais em questão são, na sua essência, fruto de uma reflexão e de um debate internos a essa área geográfica e cultural. Em segundo lugar, porque a liberdade e a igualdade proclamadas pelos filósofos diziam respeito, durante muito tempo, quase exclusivamente aos europeus e aos cidadãos das antigas colónias britânicas na América e noutros continentes, como a Oceânia os “happy few”.

Os povos da América Latina apenas participaram parcialmente desse processo. Ainda nas primeiras décadas do século XX, os valores da racionalidade e da uniformidade na gestão do poder estatal assente em regras pré-determinadas e no consentimento dos governados, no respeito pelos direitos individuais, nas garantias de liberdade e na igualdade de condições pessoais, independentemente do sexo, raça ou religião continuavam a excluir todos os povos dominados pelos europeus como os indígenas a colonizar e cristianizar. Mas esse “fardo do homem branco”, pelo qual os Estados ocidentais se encarregaram de governar praticamente, directa ou indirectamente, quase toda a humanidade impondo, pelo menos, os seus valores económicos associados à peculiar ideia de liberdade dos mercadores capitalistas, como no caso da China, com a guerra do ópio, ou do Japão foi sempre sustentado pela violência.

Nunca se baseou no consentimento dos dominados. Foi precisamente na época da emancipação dos muitos povos colonizados pelas potências europeias, quase sempre alcançada através de duras lutas, frequentemente armadas, dos dominados contra os seus colonizadores que estes, sob a égide das potências vencedoras da II Guerra Mundial, foram envolvidos, em 1945, na criação de uma assembleia de todas as nações. Ainda que sob o controlo persistente dos poderes “mais soberanos do que os outros” como os Estados Unidos e a URSS, seguidos pelos restantes vencedores europeus. Com essa nova ordem, afirmaram-se os ideais generalizados da humanidade inscritos na Carta fundadora das Nações Unidas.

Contudo, esses mesmos ideais foram sendo distorcidos ao longo da feroz disputa entre o bloco socialista e as potências liberais de orientação democrática e economia capitalista. Com o colapso do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, esses ideais passaram a ser apropriados em exclusivo pelos vencedores ocidentais. Pareceu então possível instaurar uma nova ordem mundial, capaz de concretizar um modelo de relações pacíficas, funcional à coexistência competitiva de um mundo composto por Estados nacionais e sujeitos soberanos, capazes de assegurar os seus interesses sem recorrer à guerra. A pedra angular desse sistema era o papel da potência que liderara o bloco ocidental até à vitória ou seja, os Estados Unidos, garantes dos equilíbrios globais. Foi nesse contexto que se chegou a falar no “fim da história”, entendida como o fim das guerras e das formas irracionais da política.

Uma previsão errada, pois as guerras continuaram a devastar o mundo, alastrando-se progressivamente até atingirem a própria Europa, que até então beneficiara de uma longa paz interna desde 1945, também devido ao seu papel central no confronto entre os dois grandes blocos do pós-guerra. Entretanto, foram precisamente os supostos garantes da ordem supranacional que multiplicaram as intervenções militares, justificadas pela necessidade de proteger os direitos humanos contra Estados que os violavam abertamente em relação aos seus próprios cidadãos. Mas essas intervenções não se dirigiram a todos os Estados que violavam tais “direitos humanos”, mas apenas a alguns poucos entre os muitos que poderiam ser incluídos nessa categoria, aqueles contra os quais os Estados Unidos e os seus aliados do momento tinham razões políticas para intervir militarmente. Da ex-Jugoslávia (cuja crise esteve intimamente ligada à política alemã e de outras potências) ao Afeganistão, do Iraque à Líbia.  

Foram precisamente os resultados dessas guerras que tornaram evidente a profunda contradição subjacente à política de promoção dos direitos humanos em contextos culturais e políticos diversos. Essa política foi, na prática, conduzida através de intervenções pontuais, frequentemente orientadas por interesses estratégicos e decisões moldadas por prioridades alheias à defesa universal dos direitos. Tal selectividade justificou, no início deste século, a crítica de vozes lúcidas e desencantadas, oriundas de tradições progressistas, que denunciaram o uso instrumental e arbitrário da linguagem dos direitos humanos, condicionada pelas alianças e inimizades geopolíticas do bloco ocidental, em particular dos Estados Unidos.

A actualidade parece confirmar essa leitura crítica. O grotesco, mas revelador, episódio em que uma figura sem escrúpulos entrega ao presidente americano uma carta a propor-lhe a nomeação para o Prémio Nobel da Paz ilustra com crueza a inversão de sentido que se operou. Em nome de um “direito” associado a valores democráticos e liberais muitas vezes definidos de forma subjectiva e aplicados de forma desigual anulou-se o próprio conceito de direito tal como herdado da tradição jurídica romana que é um instrumento social, imperfeito mas essencial, concebido para garantir a igualdade formal entre os membros de uma comunidade.

Esse plano artificial de equidade, a aequitas romana, consistia precisamente em colocar, sob a autoridade soberana do juiz, os litigantes e os portadores de interesses opostos em condições de igualdade. Hoje, essa igualdade de tratamento é negada à partida por quem detém o poder de decidir, de forma discricionária, quem será submetido ao crivo dos “direitos humanos” e quem, por conveniência política, será poupado a esse escrutínio. O resultado é uma justiça selectiva, que mina a credibilidade do próprio conceito que pretende defender. Mas atenção com a rápida transformação da relação dos Estados Unidos com o resto do mundo e até com os seus aliados tradicionais está a desmoronar-se o vasto e diversificado sistema multilateral de relações e pretensões recíprocas que se iniciou com a história moderna da Europa. Regressa-se ao domínio puro da força, como demonstram amplamente os actuais aliados de Trump, Netanyahu e Putin. Poder-se-ia falar de ciclos da história, recordando os séculos de insegurança generalizada e de domínio exclusivo da força bruta que se seguiram, na Europa, à queda do Império Romano do Ocidente. Mas aqui termina a analogia, pois o reino de insegurança e de força bruta que emerge associa-se a um esplendor nunca antes visto do domínio humano sobre a natureza, e a uma era de abundância e opulência garantida pelos avanços tecnológicos em um contraste que, para alguns de nós, pode anunciar desastres ainda maiores.

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