JORGE RODRIGUES SIMÃO
2025
A Sérvia,
situada no coração dos Balcãs, é um país que se move entre a modernização e a
memória, entre o pragmatismo económico e os dilemas geopolíticos. Este texto analisa
os méritos e desméritos da Sérvia contemporânea, explorando o seu papel
regional, os desafios internos e as tensões externas que moldam o seu percurso
político e social.
I. Introdução:
A encruzilhada balcânica
A Sérvia é, por
natureza e por história, um país de encruzilhadas. Geograficamente posicionada
entre o Leste e o Oeste, entre a Europa Central e o Mediterrâneo, entre o legado
otomano e a herança austro-húngara, a sua identidade é marcada por camadas de
conflito, resistência e reinvenção. No século XXI, a Sérvia procura afirmar-se
como um actor regional relevante, com ambições europeias e uma economia em
crescimento, mas enfrenta também obstáculos estruturais e dilemas políticos que
desafiam essa trajectória.
II. Mérito
económico: Infra-estrutura e dinamismo regional
A economia
sérvia tem demonstrado uma capacidade notável de adaptação e crescimento,
sobretudo após os anos de instabilidade que marcaram o pós-guerra jugoslavo.
Com investimentos significativos em sectores como energia, transportes e
tecnologia, a Sérvia tornou-se um pólo de atracção para empresas internacionais
e um elo logístico entre o Sudeste europeu e o resto do continente. A infra-estrutura
desenvolvida desde auto-estradas modernas a corredores ferroviários
estratégicos reforça a posição da Sérvia como plataforma de circulação de bens
e pessoas. O Porto de Belgrado, os aeroportos internacionais e os centros
industriais em cidades como Novi Sad e Niš são exemplos de uma aposta clara na
conectividade e na competitividade.
III. Mérito
político: Negociações com a União Europeia
A participação
activa da Sérvia nas negociações com a União Europeia é um dos pilares da sua
política externa. Apesar dos avanços lentos e das exigências complexas, o país
tem mantido o compromisso formal com o processo de adesão, implementando
reformas institucionais e alinhando parte da sua legislação com os padrões
comunitários. Este envolvimento não é apenas técnico, mas também simbólico pois
representa uma escolha estratégica de aproximação ao modelo europeu de
governação, direitos e desenvolvimento. A Sérvia procura, através destas
negociações, consolidar a sua posição como parceiro confiável e como Estado
moderno, capaz de superar os traumas do passado e de integrar-se plenamente na
arquitectura europeia.
IV. Mérito
estratégico: Cooperação em segurança e migração
Num contexto de
instabilidade regional e de fluxos migratórios complexos, a Sérvia tem
desempenhado um papel relevante na cooperação em matéria de segurança e gestão
de fronteiras. A sua colaboração com agências europeias e internacionais tem
permitido controlar rotas migratórias, combater o tráfico de seres humanos e
reforçar a vigilância territorial. Esta cooperação é particularmente importante
num momento em que os Balcãs voltam a ser palco de tensões geopolíticas. A capacidade
da Sérvia de agir como mediadora, como ponto de contenção e como parceira
operacional é um activo valioso para a estabilidade regional e para a segurança
europeia.
V. Desmérito
diplomático: Relações com o Kosovo
A questão do
Kosovo continua a ser o principal obstáculo à normalização plena das relações
internacionais da Sérvia. A hesitação em reconhecer a soberania kosovar, aliada
a episódios de tensão diplomática e confrontos simbólicos, impede avanços
significativos no diálogo bilateral e compromete a imagem da Sérvia como actor
conciliador. Este impasse não é apenas político, mas também emocional e
identitário. O Kosovo representa, para muitos sérvios, um território de
memória, de sacralidade e de perda. A dificuldade em ultrapassar essa dimensão simbólica
tem travado soluções pragmáticas e alimentado a desconfiança mútua.
VI. Desmérito
geopolítico: Proximidade com a Rússia
A proximidade
política da Sérvia com a Rússia é outro elemento que gera inquietação entre os
seus parceiros europeus. Embora compreensível à luz de laços históricos,
culturais e energéticos, essa relação levanta dúvidas sobre o alinhamento
estratégico da Sérvia e sobre a sua capacidade de se distanciar de influências
autoritárias. A neutralidade proclamada pela Sérvia em relação a conflitos
internacionais, como o da Ucrânia, é vista por muitos como ambígua ou
insuficiente. A manutenção de canais privilegiados com Moscovo, em detrimento
de uma posição clara ao lado dos valores democráticos europeus, compromete a
credibilidade do país no processo de adesão à UE.
VII. Desmérito
institucional: Liberdade de imprensa e direitos civis
A situação da
liberdade de imprensa e dos direitos civis na Sérvia tem sido alvo de críticas
por parte de organizações internacionais e da sociedade civil. A concentração
de meios de comunicação, a pressão sobre jornalistas independentes e a
fragilidade das garantias legais são sintomas de um ambiente democrático ainda
vulnerável. Além disso, questões como a transparência governamental, a
independência judicial e a protecção das minorias continuam a suscitar
preocupações. A construção de uma democracia sólida exige mais do que reformas
formais, requer uma cultura política de respeito, de pluralismo e de
participação efectiva.
VIII. Entre o
passado e o futuro: A Sérvia como projecto em construção
A Sérvia é,
hoje, um país em construção. Os seus méritos são reais e significativos, mas os
seus desméritos não podem ser ignorados. O equilíbrio entre desenvolvimento
económico e maturidade institucional, entre ambição europeia e fidelidade
histórica, entre segurança regional e direitos individuais, é frágil e exige
escolhas corajosas. O futuro da Sérvia dependerá da sua capacidade de se
reinventar, de dialogar com os seus vizinhos, de consolidar as suas
instituições e de afirmar uma identidade aberta, plural e democrática. O
caminho é longo, mas possível e a encruzilhada pode tornar-se ponte, se houver
vontade política e compromisso cívico.
IX. Cultura
política e legado histórico
A cultura
política da Sérvia é profundamente marcada por uma herança histórica densa e,
por vezes, contraditória. O passado imperial, os conflitos dos anos de 1990, a
transição democrática e os desafios da integração europeia moldaram uma
sociedade onde convivem o orgulho nacional, o cepticismo institucional e uma
certa nostalgia por tempos de estabilidade, mesmo que autoritária. Este legado
histórico influencia a forma como os cidadãos percebem o Estado, a autoridade e
o papel da Sérvia no mundo. A memória colectiva dos conflitos, a fragmentação
da antiga Jugoslávia e a percepção de injustiça internacional especialmente no
que diz respeito à intervenção da OTAN e à independência do Kosovo alimentam
uma narrativa de resistência e de vitimização que ainda hoje condiciona o
discurso político. A construção de uma cultura democrática sólida exige, por
isso, um trabalho profundo de reconciliação com o passado, de educação cívica e
de promoção de uma cidadania activa. A superação do trauma colectivo não se faz
apenas com reformas legais, mas com uma transformação cultural que permita à
sociedade olhar para o futuro sem medo nem ressentimento.
X. Juventude,
inovação e futuro
Apesar dos
desafios, a juventude sérvia representa uma das maiores esperanças para o
futuro do país. Altamente conectada, educada e exposta a influências globais, a
nova geração mostra sinais de abertura, criatividade e vontade de mudança.
Startups tecnológicas, movimentos culturais alternativos e iniciativas de
empreendedorismo social florescem em cidades como Belgrado e Novi Sad, revelando
um dinamismo que contrasta com a rigidez das estruturas políticas tradicionais.
No entanto, muitos jovens enfrentam obstáculos significativos como o
desemprego, precariedade, falta de oportunidades e desconfiança nas
instituições. A emigração continua a ser uma opção para milhares de jovens
qualificados que procuram melhores condições noutros países europeus. Esta fuga
de cérebros representa uma perda estratégica para a Sérvia, que precisa de
políticas públicas eficazes para reter talento, valorizar a inovação e criar um
ambiente propício ao desenvolvimento pessoal e profissional. Investir na
juventude é investir no futuro. A criação de ecossistemas de inovação, o
reforço da educação superior, o apoio ao empreendedorismo e a promoção da
participação cívica são caminhos possíveis para transformar o potencial em
realidade.
XI. A diáspora
sérvia: um recurso estratégico
A diáspora
sérvia, espalhada por vários continentes, constitui um recurso estratégico
pouco explorado. Com comunidades significativas na Europa Ocidental, América do
Norte e Austrália, os sérvios no estrangeiro mantêm laços culturais e afectivos
com o país de origem, podendo desempenhar um papel importante na sua
modernização. As remessas enviadas pela diáspora representam uma fonte
relevante de rendimento para muitas famílias, mas o seu contributo pode ir
muito além do apoio financeiro. A transferência de conhecimento, a criação de
redes de negócios, o intercâmbio académico e a diplomacia informal são formas
de capitalizar a experiência e os recursos da diáspora em benefício do
desenvolvimento nacional. Para tal, é necessário criar mecanismos
institucionais de ligação, promover políticas de inclusão e reconhecer o valor
simbólico e prático das comunidades no exterior. A diáspora pode ser uma ponte
entre a Sérvia e o mundo, contribuindo para a sua projecção internacional e
para a construção de uma sociedade mais aberta e cosmopolita.
XII. O papel da
Sérvia nos Balcãs Ocidentais
A Sérvia é,
indiscutivelmente, um dos actores centrais nos Balcãs Ocidentais. A sua
dimensão territorial, demográfica e económica confere-lhe um peso específico na
região, mas também uma responsabilidade acrescida. A estabilidade dos Balcãs
depende, em grande medida, da capacidade da Sérvia de promover o diálogo,
evitar confrontos e liderar pelo exemplo. As relações com os países vizinhos como
o Montenegro, Bósnia-Herzegovina, Macedónia do Norte, Albânia e Croácia são
marcadas por uma mistura de cooperação e desconfiança. As feridas do passado
ainda não cicatrizaram completamente, e os nacionalismos latentes continuam a
ameaçar a convivência pacífica. A Sérvia tem aqui uma oportunidade única de assumir
um papel construtivo, promover a integração regional e contribuir para a
reconciliação histórica. A participação em iniciativas multilaterais, como o
Processo de Berlim ou a Comunidade Política Europeia, pode reforçar esta
vocação regional. A liderança não se impõe apenas pela força, mas pela
capacidade de gerar consensos, de construir pontes e de inspirar confiança.
XIII. A Sérvia
e os desafios da multipolaridade
Num mundo cada
vez mais multipolar, a Sérvia procura posicionar-se de forma estratégica,
mantendo relações com diferentes blocos de poder. A sua política externa é
marcada por um certo pragmatismo, que visa equilibrar os laços históricos com a
Rússia, os interesses económicos com a China e a aspiração de adesão à União
Europeia. Este jogo de equilíbrios é delicado e, por vezes, contraditório. A
neutralidade proclamada em relação a conflitos internacionais pode ser
interpretada como ambiguidade, e a recusa em alinhar-se com sanções europeias
contra a Rússia levanta dúvidas sobre o compromisso com os valores
democráticos. No entanto, esta postura também reflecte a complexidade do
contexto regional e a necessidade de preservar a autonomia estratégica. A
Sérvia não quer ser satélite de nenhuma potência, mas sim actor soberano num
sistema internacional em transformação. O desafio está em manter essa autonomia
sem comprometer os princípios que sustentam a sua integração europeia.
XIV. Propostas de reforma e caminhos possíveis
Para que a Sérvia possa consolidar os seus méritos e
superar os seus desméritos, é necessário um conjunto de reformas estruturais
que envolvam não apenas o Estado, mas também a sociedade civil, os meios de
comunicação, o sistema educativo e o tecido económico. A transformação não pode
ser apenas institucional mas também tem de ser cultural, ética e participativa.
Algumas
propostas concretas incluem:
- Reforma
judicial profunda, com
garantia de independência, transparência e celeridade nos processos.
- Protecção efectiva
da liberdade de imprensa, com
mecanismos de apoio ao jornalismo independente e combate à concentração
mediática.
- Promoção
da inclusão social, com
políticas públicas voltadas para minorias étnicas, comunidades vulneráveis
e igualdade de género.
- Investimento
em educação cívica, para
formar cidadãos conscientes, críticos e participativos.
- Apoio à
inovação e ao empreendedorismo, com
incentivos fiscais, acesso a financiamento e redes de incubação.
- Reforço da
diplomacia regional, com
iniciativas de reconciliação, cooperação transfronteiriça e integração
económica nos Balcãs.
Estas reformas exigem vontade política, mas também
pressão social e envolvimento internacional. A União Europeia, organizações
multilaterais e parceiros estratégicos podem desempenhar um papel importante no
apoio técnico, financeiro e diplomático à transformação sérvia.
XV. Cenários futuros: entre integração e isolamento
O futuro da Sérvia pode seguir diferentes caminhos,
dependendo das escolhas que fizer nos próximos anos.
Três cenários possíveis ilustram os desafios e
oportunidades que se colocam:
1. Integração plena na União Europeia: Neste cenário, a Sérvia acelera as reformas, resolve o
impasse com o Kosovo, fortalece as suas instituições democráticas e adere à UE
como membro de pleno direito. Este caminho exige compromissos difíceis, mas
oferece estabilidade, crescimento e reconhecimento internacional.
2. Neutralidade estratégica com equilíbrio regional: A Sérvia mantém uma posição de equilíbrio entre Leste e
Oeste, reforça a sua autonomia estratégica e aposta na cooperação regional.
Este modelo exige diplomacia sofisticada, capacidade de gestão de conflitos e
uma política externa pragmática.
3. Regressão autoritária e isolamento internacional: Neste cenário, a Sérvia aprofunda a sua proximidade com
regimes autoritários, enfraquece as suas instituições democráticas e afasta-se
dos padrões europeus. O resultado seria o isolamento político, a estagnação
económica e o aumento da tensão social.
Estes cenários não são inevitáveis, mas possíveis. A
escolha dependerá da capacidade da Sérvia de se reinventar, de ouvir os seus cidadãos
e de construir uma visão partilhada de futuro.
XVI. Epílogo: A
Sérvia como espelho da Europa
A Sérvia é mais
do que um país dos Balcãs; é um espelho da Europa. Os seus dilemas são os
dilemas do continente de como conciliar identidade e diversidade, como promover
segurança sem sacrificar liberdade, como garantir desenvolvimento com justiça
social. O percurso da Sérvia revela as fragilidades e as potencialidades da
construção europeia, e convida à reflexão sobre o papel das fronteiras, das
memórias e das escolhas políticas. Este texto procurou mostrar que a Sérvia não
é apenas um espaço de conflito, mas também de criação, de resistência e de
esperança. Os seus méritos são reais, os seus desméritos são superáveis, e o
seu futuro está em aberto. Cabe aos seus líderes, aos seus cidadãos e aos seus
parceiros internacionais transformar a encruzilhada em caminho e fazer da
Sérvia um exemplo de reconstrução democrática, de integração plural e de
dignidade política.
Bibliografia:
- Bieber, Florian. A Ascensão do
Autoritarismo nos Balcãs Ocidentais. Palgrave
Macmillan, 2020.
- Judah, Tim. Sérvia: A História
por Trás do Nome. Oxford
University Press, 2000.
- Pavlović, Srđa. Anexação
Balcânica: A Integração de Montenegro e a Criação do Estado Comum. Purdue University Press, 2008.
- Comissão Europeia. Relatório de
Progresso da Sérvia 2024. Bruxelas:
Publicações da UE, 2024.
- Freedom House. Liberdade no
Mundo: Relatório sobre a Sérvia, 2025.

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